A escuta do sintoma
Em geral, quando a maior parte das pessoas se percebe com um sintoma, sua primeira reação é buscar uma forma de eliminá-lo. Reforçadas pela medicina moderna, com sua ênfase na doença e foco no combate ao sintoma, as pessoas nem imaginam que aquela disfunção que está ocorrendo em sua psique vem para lhe dizer algo. A mensagem é ignorada, os sintomas suprimidos, e suas causas e finalidades raramente se tornam conscientes.
Causas x consequências
Imagine que você está dirigindo seu carro e, de repente, acende uma luz no painel que você não sabe o que significa. Ao levar o carro ao mecânico, ele corta o fio que fez acender a luz e lhe devolve o veículo, sem sequer procurar saber o que causou o problema.
Tal é a forma que vem sendo tratada grande parte dos sintomas pela medicina moderna, principalmente os de ordem psicológica. Transtornos de ansiedade, depressão, síndrome do pânico e insônia são consequências, são as luzes acendendo no painel. O que acendeu aquela luz? Por que esse transtorno apareceu neste momento em minha vida? O que há de sintomático em minha forma de pensar, de me relacionar ou com meu estilo de vida? Quais seriam as causas disso estar acontecendo comigo?
Estas são perguntas essenciais que propõem uma reflexão, uma busca de sentido. É a atitude de alguém que faz uma escuta do sintoma como um aviso de que algo não está bem dentro de si e vai investigá-lo como uma expressão da vida, atuante e cheia de significado. Carl Gustav Jung, o psiquiatra fundador da psicologia analítica, propõe uma abordagem bastante interessante com relação a este tema. Ele diz:
“Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhes gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem somos. Uma neurose estará realmente ‘liquidada’ quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é curada, mas ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la.”
Para compreender essa inversão radical na forma de entender os sintomas proposta por Jung é preciso entender um pouco sobre funcionamento psíquico.
Uma breve noção sobre dinâmica psíquica
Jung entendia a psique do ser humano como dotada de uma função autorreguladora, o que significa que ela própria busca se organizar para manter/atingir o desenvolvimento harmônico daquele ser humano. O funcionamento da dinâmica psíquica de cada indivíduo é único, resultado da combinação de seus componentes consciente e inconscientes, e é a partir da compreensão da dinâmica psíquica individual que se poderia compreender o adoecimento psicológico. Ou seja: todo sintoma está relacionado àquele indivíduo específico, que tem aquela história de vida, aquelas marcas emocionais, aqueles valores, passando por aquele estado, naquele momento de vida. Ao observar o sentido da neurose na psique e na vida de cada indivíduo, Jung percebeu que ela sempre apontava para um processo de amadurecimento, para o próximo passo a ser dado. É como se contido nesse sintoma estivesse uma parte não desenvolvida da personalidade, que agora é convocada e confrontada, e esse confronto torna-se fonte de desenvolvimento. Assim, o sintoma pode ser visto como uma tentativa natural de mudança, de cura, de reorientação.
Em nosso desenvolvimento, todos devemos nos adaptar a exigências externas (família, profissão, sociedade) e também internas, ou seja, exigências relacionadas à nossa própria natureza. Quando negligenciamos qualquer uma dessas necessidades fundamentais, os sintomas podem aparecer.
Sem pretender esgotar ou explorar profundamente o assunto, vamos examinar uma situação típica onde fica exemplificada essa dinâmica: para existirmos no mundo social, criamos uma espécie de “persona”, termo que vem do grego e significa “máscara”. Esta “máscara social” é o nosso modo de ser e agir no mundo, aquilo que nos permite relacionar com os outros e com as exigências sociais de forma adequada: são os papeis que desempenhamos, incluindo aspectos da forma como nos vemos e como queremos ser vistos pelos outros. Ela tem uma função importante, pois é graças a ela que nos adaptamos externamente. Entretanto, ela não corresponde à nossa própria individualidade, a quem somos verdadeiramente. O que acontece frequentemente é que esse funcionamento pode se tornar inadequado e pode se tornar uma prisão: quando nos identificamos excessivamente com a máscara ou quando passamos a funcionar exclusivamente a partir das exigências do mundo externo, a partir do que os outros querem de nós. Quando funcionamos desta forma, em função de agradar o outro ou de manter aparências, perdemos algo de fundamental: não mais conectados à fonte interna, ou àquilo que muitos chamam de alma, experimentamos um esvaziamento daquela qualidade vital que dá sentido às coisas, que preenche de vida e traz ânimo à existência. Nos sentimos incapazes de sermos nós mesmos. Mas como esse processo se dá sem que percebamos, de forma inconsciente, o sintoma muitas vezes aparece apontando esse vazio, essa falta de conexão consigo mesmo, podendo se manifestar através da depressão, da angústia, da insônia.
A atitude da consciência periodicamente tem que ser revista, reformulada. Cada etapa da nossa vida é composta de tarefas diferentes de desenvolvimento, e muitas vezes os sintomas aparecem justamente nestes difíceis momentos de transição, onde algo tem que morrer para dar lugar ao novo.
Assim, o sintoma vem e nos força a fazer uma parada: olhar para nossa vida e avaliar como nossa existência está se desenvolvendo nas diversas dimensões: social, familiar, anímica, profissional, etc.
Ocorre muitas vezes uma reformulação de valores que norteiam a nossa vida. O sintoma vem nos curar pois a nossa atitude é inadequada perante às exigências da vida ou perante às necessidades da alma. No caso citado, o sintoma veio curar a pessoa doente de uma vida sem sentido, sem significado, da prisão que é se nortear unicamente a partir da necessidade de corresponder ao desejo do outro. Muitas vezes, quando consegue-se ampliar a visão e forjar uma personalidade mais ampla, a neurose desaparece. Em muitos momentos a angústia se torna uma força propulsora para dar a virada.
Obviamente existem diversas formas de abordar este tema, e muitos dos sintomas que nos acometem têm diferentes fontes e significados. Esta que apresentei é apenas uma delas. Devemos considerar, inclusive, que vivemos em um contexto cultural também bastante doente e “adoecedor”, na medida em que promove crenças e valores falsos que nos direcionam para vidas empobrecidas interiormente. Há questões familiares que podem ser somatizadas através dos sintomas, bem como fatores endócrinos altamente relevantes no que se refere a este assunto, para mencionar apenas alguns outros fatores importantes a considerar.
Vamos discutir mais sobre alguns destes temas em breve.